Quem sou eu

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Uma alma morta porém ressuscitada. Um soldado maníaco com uma metralhadora que cospe fogo e palavras. E nas guerras das palavras eu sou veterano. Eu sou o homem-tigre. Somewhere in hell, i'm still typing.

domingo, 7 de junho de 2009

O ESQUEMA

Sentei-me num banco da praça e permaneci por duas horas. Ainda estava dia, e quando me levantei já era noite. Uma noite imperceptível, como tantas outras.
Em cidades pequenas a rotina se torna mais visível. A rotina se revela inteira, sem vergonhas ou segredos, diante dos nossos olhos. As grandes metrópoles também são pontuadas pela rotina, mas nas cidades pequenas não podemos desviar os olhos dela. É impressionante; tudo o que você vê, você já viu antes.
As pessoas parecem ligadas por telepatia, como uma grande esponja, uma colônia de bactérias, bactérias que juntas tornam-se uma única forma de vida... e bóiam pela água parada, rastejando pelo limo, procurando comida. Como se suas mentes estivessem conectadas umas às outras pela corrente psíquica da rotina.
Subitamente, as ruas vazias se encheram de gente. As pessoas apareceram no mesmo horário; pontuais. Um batalhão de formigas marchando em direção às ruas, todas exatamente no mesmo instante. Era engraçado o modo como as pessoas pareciam ter combinado para surgir naquele mesmo momento. Suas mentes funcionavam como um relógio.
Olhei para um local qualquer de uma esquina qualquer e lá estava o sujeito que todas as noites, no mesmo horário, aparecia por lá e se recostava no poste. Então olhei para os lados e me deparei com os mesmos rostos, sentados nos mesmos bancos, virados para a mesma direção. Era horrível e cômico ao mesmo tempo. Eles não podiam evitar. Eram peças no grande tabuleiro da Rotina.
Você deve estar se perguntando, “por que diabos não fazem alguma coisa para mudar essa condição miserável?” Cara, não seja tão duro com as pessoas. Não vamos condená-las, tá legal? Além do mais, VOCÊ também faz parte do esquema da rotina, e EU também. Não estou salvando os nossos rabos!
Mas não fique aí imaginando que as pessoas não pensam em grandes mudanças. Elas pensam, mas a questão é que as grandes mudanças em que pensam hoje são as mesmas grandes mudanças em que pensaram ontem. Até as mudanças e as guinadas são consumidas pela rotina.
Os carros pareciam iguais e cruzavam as esquinas com seus motores possantes, sempre ultrapassando os mesmos sinais vermelhos. Sabiam que não chegariam longe, por isso não esperavam muito da vida. As conversas da garotada que se aglomerava à minha frente eram as mesmas conversas de todas as noites, e eram acompanhadas por risadas que explodiam exatamente nos mesmos instantes. Se me afastasse deles e me aproximasse do pessoal mais velho, escutaria as mesmas lamentações, as mesmas indignações; todos aqueles ditos adultos com os mesmos problemas. Todos sem cabelos, sem dentes, sem visão, sem sentido, sem esperança, tagarelando com suas vozes tediosas. Nas metrópoles essas coisas se espalham ao longo da orla marítima e dos arranha-céus, nas cidades pequenas fica tudo diante do seu nariz.
Pensei, “que droga, não consigo parar de pensar na rotina, exatamente como faço todos os dias!”. Talvez a rotina seja necessária, seja uma forma de garantir que a chatice será perpetuada através das eras, exatamente como as baratas.
Então apareceu aquele sujeito atravessando a praça: gordo como uma baleia, meia-idade, uma barba gordurosa no rosto, os olhos pequenos atrás dos óculos, os cabelos emaranhados. Carregava uma porção de embrulhos. Tropeçou nos próprios pés e caiu de barriga no chão. Os embrulhos voaram para todos os lados. Sua bunda ficou aparecendo, suada e branca, e os olhos arregalaram quando os embrulhos rolaram pelo chão. Disparei a gargalhar, até que as lágrimas escorressem pelas minhas bochechas. Algo tinha quebrado o esquema.

domingo, 31 de maio de 2009

EU SOU ELVIS PRESLEY


Eu sou Elvis Presley. O Elvis das letras. É, eu sei, soa pretensioso pra caralho, mas é verdade. No que me propus a fazer com essas letrinhas miúdas e pretinhas, fiz como Elvis. Entrei nos estúdios da Sun e, com um pouco de insegurança, disse:
Não me pareço com ninguém.
Como Elvis, eu estava errado.
O garoto caipira de Tupelo quis não se parecer com ninguém, mas escolheu pra debutar com uma canção de Ella Fitzgerald interpretada como Dean Martin. Pois é. Meu caro Elvis, nem sempre você foi original. Diabos, aos 18 anos ninguém é original. Mas voltando ao MEU umbigo... eu também me parecia com um monte de gente; também queria não me parecer com ninguém.
Peguei aquelas pilhas de livros e hordas de autores e fiz a minha saladinha particular de assombrações. Às vezes, eu cuspia Byron na fuça da cidade. Às vezes, mandava uma escarrada de Bukowski a plenos pulmões. Outras vezes, rascunhava o próprio Elvis nos parágrafos.
Assim, aos trancos e barrancos, com mil disfarces e cinco mil fantasias, segui em frente, querendo não me parecer com ninguém e me parecendo com todo mundo. Pois é. A verdade é que todo mundo se parece com todo mundo. Mas pelo menos eu me parecia com todo mundo que estava MORTO, o que me garantia um bom pedaço no palco do egocentrismo. A coisa fica um tanto quanto chata quando nos parecemos com todo mundo que está vivo.
Mas eis que... BANG! Como Elvis, lá estava eu, conseguindo, conseguindo! Finalmente, não me parecia com ninguém. Foda-se Byron, foda-se Bukowski, foda-se Elvis, foda-se Nelson Rodrigues e Machado de Assis. Agora, eu era só eu (e uso e abuso dessa palavrinha maravilhosa de duas letras: eu, eu, eu). E nisso me parecia com Elvis: não me parecia com ninguém. Demorou, mas aconteceu.
Está vendo como não há pretensão alguma nisso? Quando digo que sou o Elvis Presley das letras, não estou perdendo tempo com essa baboseira de rei, maior do mundo, melhor que todos, ser supremo ou coisa que o valha. Me pareço com Elvis porque me pareço comigo. Porque conquistei a minha voz. A minha maneira. My Way.
Aqui estou, cara. Sozinho, comigo mesmo. Com minhas próprias letrinhas cuspidas, escarradas, cagadas e por vezes encantadas. E são as MINHAS letrinhas. Não alguma cópia carbono de algum estúpido fantasma ou – pior ainda – de um vivo débil mental que perde tempo por aí.
Alguns dizem que é coisa da idade. Pessoalmente, DETESTO esse papo de idade, nem pra cima nem pra baixo. Como disse o meu Orkut, toda geração se acha mais inteligente que a anterior e mais sábia que a seguinte. Por isso, idade é papo furado. Outros dizem que tem a ver com experiência. Coisa que também não faz muito sentido, pois você pode ter toda a vivência do mundo e continuar sendo o mesmo paspalho de sempre. Seja lá como for, é muito bom quando você consegue falar com sua própria voz. ESCREVER com suas próprias letrinhas. É infinitamente melhor do que falar, escrever e gozar com fantasmas de pano de chão, por mais grandiosos que esses fantasmas sejam.
Ser Elvis Presley (ou Daniel Frazão, escolha o nome que soar melhor) é um paradoxo. Assim como aconteceu com o pobre Elvis quando se afastou dos holofotes para servir ao exército, agora que saí de cena desponta a enxurrada de Fabians, Paul Ankas e Pat Boones, querendo fazer igual e querendo não se parecer com ninguém. Ai, meu saco...

quinta-feira, 21 de maio de 2009

1978


Nasci em 1978. O filme que estava em cartaz era Os Embalos de Sábado à Noite. Ou talvez Grease. Como no Brasil os filmes chegam atrasados, provavelmente era Os Embalos de Sábado à Noite.
Agora, assisto o presente passar por mim real e indiferente, sempre tão frágil, e penso numa série de coisas. Foi ano de copa do mundo. O Brasil jogava no dia exato em que nasci, na hora exata. Perdeu. De certa forma foi melhor assim, porque fez com que os médicos retornassem à sala de parto.
John Lennon ainda não tinha tomado o tiro na cuca. Ocupava-se em lavar roupa e levar criança pro zoológico. Um tempo depois, no ano em que morreu, lançou o Double Fantasy, um disco impregnado com esse clima de lavar roupa e levar criança pro zoológico, o que de certa forma acabou soando legal. Mas voltando a 78... Elvis ainda estava fresco no caixão. Encontrei com ele. Coincidimos de pegar o mesmo elevador, eu descendo e ele subindo. Elvis olhou pra mim, naquele silêncio dos elevadores, e disse: “E aí garoto, o que é que você vai fazer lá embaixo? Rock?”. Respondi que não sabia o que ia fazer e então ele me desejou boa sorte.
Village People, meu amigo, era a bola da vez!
Ano estranho, o ano em que nasci. Computador era coisa pra maluco espacial. Bill Gates era um carinha qualquer, de espinhas na cara. Ha, ha. Pensar que um dia eu já tive mais grana que ele...
Ainda não estavam armando o rebu das células-tronco, isso porque o super-homem ainda era super-homem.
As pessoas usavam costeletas e golas enormes. Achavam bonito. Mas se você parar pra pensar, nós também achamos bonito um punhado de coisas que logo parecerão sem sentido. A vida se mostra um simples acúmulo de momentos sobrepondo-se uns aos outros, enquanto dizemos um adeus eterno.
Spectroman era o único programa japonês que passava na televisão. Os caras do CHIPS mandavam no pedaço. E na telona Luke Skywalker reinava supremo. Em 78, você precisava saber o que era um sabre de luz.
Aqui pelo Brasil as coisas estavam esfriando. O pessoal já estava cansado de caminhar e cantar, e só queria sentar um pouco, recuperar o fôlego. Ninguém consegue ser tropical o tempo todo. Começávamos a nos conformar com a miséria humana. Depois de levar muita porrada, acabamos chegando à conclusão de que o melhor era imaginar que os murros não passavam de beijos. Que o horror era amor. Que o silêncio era música. Que o VAZIO era TUDO o que existia.
Foi um ano pra lá de estranho.
Fico me perguntando o que faria se enxergasse todas essas coisas no instante do meu nascimento. O que faria se não fosse apenas um bebê e enxergasse o passado e o futuro brilhando com os bisturis, bem à minha frente? Teria noção do que estava por vir? Ah, 1978... você foi só o primeiro deles! Naquela época eu não podia imaginar que estaria aqui, escrevendo confissões para desconhecidos. Naquela época o ano de 78 me passou tão batido, tão efêmero, tão liso quanto a própria vida, que não imaginei que estaria aqui falando dele, vinte e seis anos depois. E você? O que ganhou dos seus dias estranhos? O que define o que você foi e o que vai ser para toda vida? O que viu em primeiro lugar? O que acha que verá por último?
Se algum dia eu encontrar novamente com o Elvis no elevador (desta vez eu subindo e ele descendo) vou desejar-lhe boa sorte. O cara vai precisar. E vou lhe perguntar se vai fazer rock, e ele vai dizer que não, pois já fez isso da última vez.
_ E você, garoto, o que fez lá embaixo? – ele irá me perguntar.
Coçarei o queixo, olharei pensativo para o teto e direi, mais para mim do que para ele: “Taí uma boa pergunta...”

Teletubbies


Era a primeira vez que eu via uma leitura de poesia de manhã. De qualquer forma, era a primeira vez que eu via uma leitura de poesia. Não estava esperando grande coisa, e só compareci porque tinha sido organizada por um amigo, e era na sua casa. O tipo de compromisso que se vai mais por obrigação do que por vontade própria; aliás, como quase todos os compromissos.
Sentei-me numa cadeira e me estirei, tentando ficar incauto, torcendo para que ninguém me chamasse para ler um poema. Esperando para que começasse a tal leitura.
As pessoas chegavam aos poucos, cumprimentavam o anfitrião, mostravam alguma folha de papel amassada e sentavam numa das inúmeras cadeiras espalhadas pela sala. Meu estômago roncava, porque não tinha tomado café da manhã. Droga de leitura de poemas pela manhã!
Todos aplaudiram quando o primeiro poeta subiu no pequeno tablado. Eu não o conhecia, quer dizer, nunca tinha falado com ele. Era um sujeito com cara de fuinha, vestia um blazer cinzento e equilibrava os óculos enormes na ponta do nariz. Não devia passar dos vinte e poucos e já parecia um corretor de imóveis escrito e escarrado. A fuinha esperou com ansiedade para que os aplausos amainassem e então começou a declamar:
_ Vejo o teu cálido amor nas cores do arco íris... – e seguiu declamando.
Não prestei muita atenção no que ele dizia, apenas me concentrava no modo como os óculos balançavam na ponta daquele nariz. Então entrou o segundo poeta. Vestia um jeans surrado e calçava sandálias franciscanas. Era um moleque de dezenove anos, de cabelos longos e costeletas. Não deve ser ruim, pensei. Começou a declamar, feito uma hiena.
_ A ALVORADA, TÃO LINDA! O HORIZONTE, TÃO AZUL! COMO SÃO BELAS AS TUAS COLINAS! – e por aí vai.
Depois entrou outro e outro e outro e outro. E era sempre a mesma história. Uma espécie de revezamento entre relvas, horizontes, amores, rochas, lindezas, golfinhos e planícies.
Pensei comigo mesmo “meu Deus, estou cercado de teletubbies!”.
E tive que agüentar, um por um, todos aqueles poetas teletubbies subindo no tablado e falando alguma coisa sobre algum animal silvestre que eles, por algum motivo, associavam com o amor e a beleza. Todos esses poetas guardavam suas imagens pueris nos bolsos, para os momentos de emergência. Era só uma questão de combiná-las em estrofes, variá-las no tom, nas imagens e nos desfechos.
Agora eu entendia o motivo da leitura ter sido feita de manhã: é esse o horário dos teletubbies! Assim que a tal leitura acabou saí correndo dali. Já era meio-dia.
Odeio o meio-dia. É a hora mais imbecil de todas. Odeio a claridade do meio-dia iluminando todo mundo. O modo como ela deixa à mostra cada ruga, cada cabeça careca, cada sorriso idiota, cada terno preto dos desocupados, cada zé mané esperando pelo ônibus. Não há música no meio-dia; não se escuta Dear Prudence tocando nas esquinas. Me sinto vazio, completamente perdido e sozinho, completamente desnudo num mundo sem qualquer espécie de sentimentos, onde todos se espremem sob o sol que clareia as vitrines. E não sei o que é pior, o meio-dia ou os poetas teletubbies. Mas talvez a questão não seja essa. Talvez um tenha nascido para o outro. Ou talvez não, talvez um acabe com o outro, mais cedo ou mais tarde.
Olhei para o relógio da praça e vi que fazia trinta graus. Quente. Os estudantes saíam das escolas e caminhavam em grupos pelas calçadas, todos rindo e papeando. Eram os únicos que pareciam não se importar. Sortudos. Imaginei até quando os teletubbies permaneceriam lá, naquela sala, com suas écharpes e seus elogios, fugindo do meio-dia.
para Charles Bukowski
(i miss you as hell)

Você esqueceu o ketchup!


Essa aconteceu com um amigo meu. Ele estava na casa de uma turma de amigos, vocês sabem, se divertindo no fim de semana e tudo mais. Era aquela época da vida em que a gente se diverte simplesmente por estar entre amigos. Depois dessa fase, a diversão vai se tornando cada vez mais difícil.
O pessoal começou a ficar com fome lá por volta das onze da noite e resolveu que ia comprar uns hambúrgueres. Não era uma boa idéia, pois esse meu amigo não tinha nada nos bolsos. “Já que não tem dinheiro, então é você que vai até a lanchonete pegar os hambúrgueres!”, um deles ordenou.
E lá foi ele, completamente sozinho pelas ruas do bairro nas altas horas da noite, atravessando o centro de sua cidade para pegar hambúrgueres. Se pelo menos tivesse um carro, as coisas seriam mais fáceis.
Todos vocês já perambularam por aí numa noite de sábado, e sabem como é. Os sábados à noite são para os sujeitos com grana ou com namorada, ou com as duas coisas. Meu amigo não tinha nem uma coisa nem outra, era apenas um moleque de dezessete anos indo rumo à lanchonete.
_ Cinco hambúrgueres e cinco guaranás, por favor.
O funcionário o olhou indiferente, fez suas contas, pegou a grana da vaquinha e deu-lhe um saco com uma pilha de hambúrgueres embrulhados para viagem.
Foi quando esse meu amigo teve a péssima idéia de pegar um atalho para chegar mais rápido.
Assim que entrou naquela rua escura, um sujeito mal-encarado o abordou e apontou um revólver em seu peito.
_ Passa a grana!
Como vocês já sabem, não havia grana. E o dinheiro da vaquinha tinha ido embora com os hambúrgueres.
_ Então passa essa camisa! – gritou o assaltante.
Era uma camiseta simples, daquelas compradas em atacado, e o cara não se deu por satisfeito. Não ia levar apenas uma simples camisa para casa.
_ Passa a calça também!
O problema é que o meu amigo estava sem cueca. Tinha caído na piscina usando sua cueca como sunga, e agora ela secava no varal da casa da turma.
_ Pelo amor de Deus, a calça não! – ele implorava para o assaltante.
O sujeito engatilhou o revólver e gritou “passa logo essa calça!”.
Sem outra opção, ele tirou a calça e a entregou para o assaltante, ficando completamente pelado no meio da rua.
Estar a pé, no centro da cidade, sem nenhuma roupa, após voltar da lanchonete, é o tipo de experiência que um garoto de dezessete anos não precisa passar.
Sem esperar por ajuda, ele disparou na direção da casa da rapaziada. Ao avistarem aquele cara nu correndo, segurando o saco (de hambúrgueres!), as pessoas abriam caminho e gritavam. Algumas começavam a rir e soltavam piadinhas do tipo “ei, você esqueceu o ketchup!”.
Foram os quatro quarteirões mais longos de sua vida. E também foi o saco de hambúrgueres mais pesado que carregou.
Chegou na casa dos amigos suado e ofegante, além de pelado, naturalmente. Tocou o interfone e gritou chorando para que lhe abrissem a porta. Seus amigos estranharam o desespero na sua voz e hesitaram antes de abrir, o que só serviu para aumentar seu suplício.
Ele era um moleque de dezessete anos sem grana e sem namorada, que tinha atravessado nu o centro da cidade num sábado à noite. Esse era um bom motivo para nunca mais sair de casa. Às vezes a vida te sacaneia pra valer.
A rapaziada abriu a porta e pulou para trás ao ver que ele estava pelado. Ofegante e muito furioso, ele entrou pela sala sem importar-se com o fato de estar nu, entregou com violência o embrulho da lanchonete, e então gritou: “Taí os seus hambúrgueres!”. Tinha esquecido o ketchup.

alalaô


A rua estava coberta de lama, e todos se divertiam. Sorriam, engoliam cerveja e rolavam pela água do esgoto. O som que pairava no ar era o das risadas e de alguns gritos ocasionais. Ainda não tinham começado a tocar as estúpidas músicas de axé. Era só o início do carnaval, e já estávamos cobertos de lama até o pescoço.
Cheguei no centro por volta das nove. Estava com fome e queria comer alguma coisa no shopping, mas era impossível atravessar a rua. Ela tinha se transformado no fluxo de um rio. Além disso, o shopping estava alagado. O shopping estava alagado e as ruas tornavam-se mar. Virei para o meu amigo, Luyalan, um bom sujeito, um cara grandalhão que compartilha do meu sarcasmo e do meu senso de humor maníaco, e falei:
_ Acho melhor a gente ir pra São Pedro.
Ele analisava a rua, os bueiros cuspindo água suja como se vomitassem em cima dos foliões.
_ Talvez você tenha razão. Mas como vamos voltar de lá?
_ Não sei, mas dane-se. Olha só pra isso. Pior não pode ser.
Nenhum de nós estava disposto a enfiar o pé no esgoto. Não estávamos apropriadamente trajados para isso. Pegaríamos o próximo ônibus.
_ Se vamos ir, é melhor a gente ir logo. Daqui a pouco vai começar o axé e a coisa toda vai se transformar num verdadeiro inferno – eu disse.
Não tínhamos nada contra o carnaval. Estávamos dispostos a nos divertir, no duro. Estávamos dispostos a escutar axé music pelos próximos quatro dias, mas tudo muda de figura debaixo de lama.
Luyalan contemplava a frustração carnavalesca, a persistência dos bêbados que mergulhavam nos dejetos em troca de algumas risadas, e lembrou-me de que talvez São Pedro não estivesse muito diferente. São Pedro era noventa por cento de terra batida, e devia ter se transformado num pântano. “Que droga, você tá certo”, lamentei.
Para piorar, a chuva apertava. Luyalan começava a se desesperar, e ficava repetindo para si mesmo “isso não é um carnaval! Isso não é um carnaval!”. Eu também não me sentia nos meus melhores dias, mas procurava me conformar. Afinal, como contrariar a chuva? Como contrariar as forças da natureza, que não se importam com os feriados? Não nos restava nenhuma alternativa, tudo que podíamos fazer era esperar. Nos ajeitamos debaixo de uma pequena marquise e ficamos ali, parados, pela maior parte da noite. Encontramos com um punhado de amigos, mas já estavam muito bêbados para nos reconhecer. Enquanto aguardávamos pelo fim do primeiro dia de carnaval, rabisquei um poema num pedaço de papel. Ficou mais ou menos assim:
a vida é como um dia de chuva,
você espera
e espera e espera,
até que possa sair pra rua
e enfiar o pé na lama.
Aquilo me fez rir. Era o tipo de poema que me divertia, o tipo que ofendia a maioria das pessoas. Por algum motivo elas me preferem lírico. Sim, escrever o troço me distraiu por alguns minutos.
A chuva não passou e alagou a cidade. O carnaval, ao contrário, passou, debaixo de lama, de risadas, de divertimentos esporádicos.
Na madrugada do último dia vi um travesti sentado num bloco de pedra. Parecia ter acabado de sair do desfile, pois não vestia nada além de uma tanga decorada com paetês e purpurina. Sentava-se curvado, com o rosto escondido nas mãos, numa posição de lamento. Uma pena azul pendia da sua cabeça careca. Talvez ele fosse o carnaval, alguém sem sexo e sem tempo que senta choroso num bloco de pedra no meio da noite, ou talvez apenas um travesti lamentando por tudo o que perdia, por tudo o que eternamente perdia.
Esse foi o carnaval. Lírico o bastante pra vocês?

ZUMBIS

Algumas vezes você simplesmente está otimista. Um otimismo bobo sem qualquer significado, frágil e irrelevante como um vaso de cristal barato. Ainda assim, você veste sua melhor roupa e tudo está bem. São momentos em que você não tem dor de cabeça, e sorri para todo mundo. Tudo está perfeito, mesmo no calor mais forte dos últimos tempos, mesmo na falta d’água que o impede de tomar banho e faz com que você saia na rua maltrapilho, fedendo como um cachorro vira-lata cheio de sarnas. São dias no meio da semana que soam como um sábado de sol ou uma noite de sexta.
Geralmente as pessoas não correspondem ao seu otimismo. Olham para você como se diante de um maníaco perigoso ou, na melhor das hipóteses, de alguém digno de pena.
Não é novidade para ninguém que a incompreensão gera a hostilidade. Quando farejam o seu otimismo as pessoas tentam derrubá-lo, tentam colocar você pra baixo. É como nas novelas, onde o vilão planeja frustrar os planos do mocinho e tomar-lhe a mocinha dos braços. É assim que acontece na vida real.
As pessoas são zumbis. Elas acordam cheias de lamúrias e se arrastam pelas calçadas, como se carregassem bigornas nas costas. Caminham para o trabalho com os corpos curvados, os olhos ardendo, farejando felicidade. E quando encontram alguém repleto de otimismo, tentam transformá-lo no que elas são: zumbis... Pobres zumbis infelizes.
Você entra numa sala cheia de gente infeliz e todos o cumprimentam com sorrisos ensaiados. Dirigem-se à prateleira de cds e colocam um Paranoid pra tocar no volume mais alto, logicamente tentando te enlouquecer. No entanto, a música é música para os seus ouvidos. E você diz que Paranoid é sua canção preferida do Sabbath, e pede uma bebida para o anfitrião. Todos olham para você como se quisessem matá-lo. O dia passa e chega a noite. E ela passa e você vai embora numa escuridão sem lua, sentindo-se feliz por existir, por ser quinta-feira, pelo ar do novo século. Sentindo-se um tremendo de um sortudo.
Você já deve estar percebendo que o objetivo dos infelizes, dos zumbis, não é frustrar as suas metas, não, é mais sutil que isso. Eles não pretendem roubar a sua namorada ou fazer com que você seja despedido do trabalho ou viciá-lo em água tônica. Essas coisas são pretextos. O que querem mesmo é reduzir sua alma a um caco. Querem que você se arraste para casa reclamando da dor nas costas e que case com uma baranga e sente na poltrona para o resto da vida. O verdadeiro objetivo dos zumbis é acabar com o seu otimismo, eles sabem que o otimismo gera realização, até mesmo aqueles otimismos vagabundos que se parecem com bibelôs baratos.
Eles não suportam esse tipo de coisa, pois a subvida dos zumbis resume-se a contar os comprimidos, decorar o caminho de casa, abaixar o volume do aparelho de som e fundar partidos políticos para que possam balançar alguma droga de uma bandeira.
Então é isso aí, cara, continue otimista. Mas cuidado para não se tornar um daqueles vasos de cristal balançando na beira da estante.
Jamais desista. A desistência é uma maneira covarde de sair pelos fundos. A desistência é a porta da casa dos zumbis, é o quintal esculhambado da chácara dos pobres coitados que se debatem pela vida. É como dizia o tal do Dante, na porta do inferno está escrito: aqui entram aqueles que perderam a esperança.
Até outra hora, cara. E não pegue a saída dos fundos, não pegue a saída mais fácil, a saída de serviço, aquela que vai desembocar numa droga de um beco sujo pela chuva, onde o pessoal senta para chorar.

Truque barato

O ato de escrever transforma o escritor em ficção.
Esse é um fenômeno curioso. De certa forma, engraçado. Talvez aconteça o mesmo com todos os sujeitos que escrevem, não sei. Mas no que me diz respeito, talvez pelo tipo de coisa que escrevo ou pelas palavras que uso, acabo sendo traçado como alguém muito além do que realmente sou. As pessoas lêem os meus textos e me tomam por alguma espécie de sábio-vidente, algum tipo de conselheiro que guarda na manga as palavras certas para os momentos certos. Isso acontece tanto em relação a essas crônicas quanto ao livro e ao site. Pegam-me para ler e falam “ah, agora estou melhor! Esse garoto está certo no que diz!”. E quando me encontram pelas ruas me dão os parabéns e falam que sou um privilegiado, que sou alguém que precisa dizer coisas para as pessoas. É como se os leitores me enxergassem como um cara que sabe lidar com as situações. Estão enganados.
A imagem que brota dos parágrafos está além de mim mesmo. Ela esconde toda a incompreensão por trás de palavras certas. Mas, meu amigo, não tem nada a ver com saber lidar com as situações, nem com esperteza ou vidência ou com qualquer espécie de auto-ajuda. Tem a ver com não saber nada. Tem a ver com se sentir perdido na madrugada, com aguardar duvidoso pela manhã e com não ter as palavras certas. Não há nenhuma espécie de lição nos meus textos, nem nas minhas vivências.
Virei ficção quando comecei a escrever. Agora a ficção é grande demais, forte demais, e eu não entraria numa briga com ela. Perderia feio. Os leitores levam a ficção no pacote das palavras certas. Isso é engraçado, porque a ficção não é o que escrevo, mas como sôo para eles. Ou melhor, o que soa real para eles, eu sei que é ficção.
As pessoas não me vêem vagueando pelas ruas com o coração escapando pela goela. Elas não me vêem perdendo as palavras e ficando em silêncio.
Estou na rua numa noite qualquer, com alguns amigos, apenas tentando me divertir. Caminhamos tranqüilos até que nossas solas já estejam gastas, daí nos sentamos e chegam alguns conhecidos. Este momento poderia definir a minha vida, por qualquer motivo que fosse, mas não encontro as palavras e acabo parecendo um louco ou um chapado (já me passei pelas duas coisas nas mais diversas ocasiões). Engasgo ou simplesmente titubeio. Acabo falando coisas sem importância, parecendo um perfeito molóide. Ninguém entende nada, nem eu mesmo entendo. Aquele momento poderia definir a minha vida, mas acabou não definindo coisa alguma. Isso não é visto pelos leitores. Os leitores não me vêem hesitando nem duvidando. Não me vêem vazio. Eles não estão por perto quando me remôo e me pergunto se fiz a coisa certa ou se esculhambei com tudo. Eles não estão por perto quando saio de casa e começa a chover e acabo pegando uma enchente.
Para eles eu deixo frases e textos. Deixo minhas declarações sobre grandes e pequenas tragédias, canto blues sobre o amor que se parece com um ônibus lotado, falo a respeito de festas, de poesia e de arte, e todos acham que as experiências e os sentimentos são meus melhores amigos. Acham que transformo tudo em alguma coisa positiva, que encontro iluminações no final das coisas, que bebo a dor pelo gargalo.
Meu amigo, não pense assim, não quero te enganar.
Quando me escutar falando sobre meus ídolos, caras como Rimbaud, Kerouac, Morrison, Henry Miller e tantos outros, não me inclua nessa turma. Eles faziam dos mistérios do universo seus amigos. Tinham a alma do herói. Eles sabiam lidar com as situações. Eu apenas me transformo em ficção. Não que seja esta a minha intenção.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Botticelli is here to stay


Ela foi a coisa mais bonita que vi na faculdade. E se quer saber, não apenas na faculdade; digo com certeza que ela foi a coisa mais bonita que vi nessa cidade.
Apesar de estudar de manhã, naquele período eu estava fazendo uma matéria à noite, porque as vagas para o turno da manhã já tinham acabado. Então eu estava lá, esperando a aula começar, quando a encontrei nos portões do prédio. Não era uma garota universitária, ainda estava no colégio, e entregava folhetos de uma festa para a turma de estudantes. Ela segurava os folhetos e os entregava, e sorria com um sorriso plácido, e então olhava para frente, tímida. A imagem mais bonita que já vi. Não era simplesmente uma garota, mas uma musa, que me preenchia com palavras e poemas com sua presença. As pessoas passavam e a encaravam, sabiam que ela era linda (seria preciso ser um cego para não perceber), mas apenas eu enxergava a musa por detrás da menina linda.
Sentei-me na mureta de pedra para contemplá-la. Ela era como um sonho, uma pintura, traçada por artistas videntes. A maneira como ela sorria, serena e séria, o movimento do seu corpo ao entregar os folhetos, o desviar furtivo dos seus olhos, as roupas de rock’n roll que vestia, a mochila nas costas, a lua vermelha refletindo nos cabelos até a cintura, tudo nela era um poema.
Um cara da minha sala passou por mim e falou “ei, a aula vai começar, você não vem?”.
_ Daqui a pouco – eu disse.
Agora tenho que te contar um segredo. Para ser sincero, eu já a tinha visto algumas vezes pelas ruas, e sempre desejei conhecê-la, mas cada vez que a encontrava era como se fosse a primeira vez. Ela era sempre um mistério feito de beleza, uma novidade, sempre nova e surpreendente. Vê-la na faculdade era como uma charada do destino, como se algo me dissesse que eu precisava conhecê-la. Era isso, eu precisava conhecê-la.
Outro sujeito passou por mim, vindo do bebedouro, e falou:
_ Cara, você está perdendo muita matéria. A aula começou faz tempo. O que é que você está vendo por aqui?
Olhei para a minha musa, para aquele sorriso de Mona Lisa, para aquela ninfa de Botticelli, e disse:
_ O que estou vendo aqui? Alegria. Vê?
Ele me olhou espantado e murmurou algo como “que maluco”.
Olhei para o relógio. A aula tinha realmente começado fazia tempo. Não importava. Sentia-me um poeta e só a musa importava. Perderia a aula de bom grado. Para as musas, os artistas se dão em sacrifício. Às vezes isso significa a loucura, outras vezes, as trevas, ou a solidão... Às vezes significa perder a aula na faculdade. Como eu disse, não importava.
As horas passaram e não a conheci. A lua intensificou-se no céu, e refletia os raios vermelhos nos cabelos da musa. E a aula acabou, e outra aula começou, e continuei ali, olhando para ela, com a certeza de estar fazendo a coisa certa.
Lá pelas tantas, assim que os folhetos acabaram, ela ajeitou a mochila nas costas. Foi embora e me deixou ali, sentado naquela mureta de pedra. O último estudante deixou a faculdade, passou por mim e disse “você é um desocupado”. Ele tinha razão. Eu era um desocupado, mas encontrara uma musa. Só faltava conhecê-la. Desci a pirambeira da faculdade com a cabeça e o coração girando em mil poemas, murmurando coisas a respeito da lua e das musas e de Botticelli e de como ela era linda, dona de uma beleza etérea.
As musas não são tocadas. Não podem ser tocadas pela morte, ou pelo tempo, ou pela banalidade. As musas são tocadas somente pela arte.

Todo mundo faz alguma coisa

A festa ia começar e eu não estava me sentindo muito bem. Meus amigos estariam lá. Eu precisava ir. Algo maravilhoso poderia acontecer, então acabei me arrumando e saindo. Essa é a grande esperança de todas as festas, de todos aqueles que se olham no espelho lá pelas oito da noite e suspiram desanimados: algo maravilhoso pode acontecer.
Não sabia quem era o dono da casa em meio à multidão, mas isso não foi empecilho; nas festas isso nunca é um empecilho. Recostei-me numa estante, procurando por amigos, com a cabeça girando e o estômago embrulhado. Realmente não estava me sentindo muito bem. Naquele momento, o jantar e a sobremesa sacolejavam na minha barriga. Desejava estar em casa, na cama.
Algumas pessoas me reconheciam e gritavam “ei, Daniel!”, e então acenavam e sumiam na multidão, outras passavam por mim e me cumprimentavam e davam tapinhas nas minhas costas e sumiam na multidão. Nas festas, o melhor que você pode fazer é sumir na multidão. Era o que eu faria, se não estivesse me sentindo como uma lesma esmagada. Abri a janela e procurei respirar ar puro. Aquilo me acalmava e melhorava o meu ânimo, promovendo-me de lesma esmagada para sapo atropelado.
Agora me deixa contar um detalhe importante a respeito da festa. Não havia bandas tocando, o que de certa forma era um alívio, porque quando se está a ponto de vomitar o jantar no tapete, tudo o que não se precisa é de uma banda tocando ao vivo. Por outro lado, tinham colocado caixas de som por todo o lugar, o que transformava a sala numa verdadeira bomba atômica de rock’n roll. Eu gostava da música e do volume, mas não gostava do efeito que estava causando no meu estômago.
Não conseguia achar nenhum dos meus amigos. Tínhamos combinado um encontro na festa e, no entanto, eu estava sozinho. Quer dizer, a sala estava cheia de conhecidos, mas nenhum dos meus amigos mais chegados estava por lá. Isso fez com que me sentisse pior. Escancarei a janela e debrucei meu rosto para o lado de fora, respirando o poluído ar noturno, enquanto a paisagem girava.
Uma garota loira recostou na estante, segurando uma lata de cerveja. Eu não a conhecia, mas sabia que conhecê-la não seria difícil. Então ela me olhou e disse “oi”. Ofereceu um pouco de cerveja e eu recusei. Não falei pra ela que não bebo, apenas recusei. A garota vestia uma camiseta dos Ramones. Vestia essa camiseta e mantinha os cabelos loiros caindo pelos ombros. Era uma punk rock girl. Olhei para a rua e cogitei se ainda daria tempo de pegar o último ônibus. Não, não adiantava me desesperar. Eu estava perdido e com enjôo.
_ Você toca guitarra? – ela perguntou.
Olhei pra ela, meio tonto e amarelo, e disse “não”. Então ela perguntou o que eu tocava e respondi que não tocava nada.
_ Você tem cara de quem toca alguma coisa – ela disse.
_ Pois é, mas não toco.
A garota parecia não acreditar no meu papo e não posso culpá-la por isso; minhas palavras não estavam soando muito bem. Eu não estava nos meus melhores dias.
_ O que você faz? – ela quis saber.
_ Nada.
_ Todo mundo faz alguma coisa.
_ Eu não faço nada.
Ela avistou um grupo de amigas e correu na sua direção. Era bonita, essa garota. Eu tinha perdido a parada, tudo por causa de algumas palavras e um enjôo. É, não estava me sentindo muito bem.
Lá pelo final da noite, não me contive. O jantar subiu pela minha garganta e ameaçou jorrar bem no meio da festa. Corri para o banheiro e me tranquei. Olhei para o meu reflexo no fundo da privada, sentindo-me novamente como uma lesma esmagada. Lá fora, as caixas de som tocavam The Clash.

INDIGESTÃO

Estou de saco cheio da cidade. Os minutos que desperdiço pelas tardes de calor, cumprimentando amigos e cruzando esquinas, são atirados dentro do esgoto. E as pessoas os acompanham. Elas afundam no esgoto, mergulham nesse lamaçal de cumprimentos e sorrisos e esquinas, atrás dos seus preciosos e desperdiçados minutos.
Também estou de saco cheio de transitar pelas mesmas vitrines e semblantes e subitamente arranjar alguma coisa para fazer e depois olhar para o relógio central, esperando que os minutos passem e a noite tombe em Friburgo, destruindo o sol e a agonia. Mas a espera só me traz mais sorrisos, mais piadas sem graça e histórias inacabadas.
Sabe o que me deixa de saco cheio? São os sujeitos que me entregam panfletos quando estou cruzando uma calçada. Eles cercam as calçadas com suas muralhas humanas e vasculham a psique de cada transeunte, como verdadeiros magos. Estou lá, passando rente às vitrines, quando de repente me chega um desses sujeitos estendendo folhetos a respeito de todo tipo de assunto imaginável, sem nem ao menos me dar a oportunidade de recusar ou gritar ou sei lá o quê. Mas sabe o que me deixa mais fulo ainda? São os sujeitos que entregam panfletos para todas as pessoas que cruzam as calçadas e no exato momento em que estou passando não me entregam nada. Droga, se o cara está entregando seus malditos panfletos para todos os transeuntes, por que não entrega a mim quando passo? O que é? Não sou bom o bastante para os seus panfletos idiotas? Por acaso seus panfletos guardam algum tipo de informação secreta e valiosa que eu não possa ler, ao contrário do restante da população?
As vitrines que não refletem ninguém que eu queira encontrar; isso também me deixa de saco cheio.
Às vezes, tudo o que temos são tardes que enchem o saco e noites que enchem o saco. Às vezes não temos nada a falar para o mundo, exceto o nosso próprio asco. Às vezes a poesia acaba e não conseguimos encontrar os sentimentos, procuramos pelo amor, pelo ódio, pelo medo e pela fome, e não achamos nada. Às vezes tudo o que sentimos é uma tremenda indigestão. E então abrimos um folhetim qualquer e nos deparamos com algum poeta apaixonado ou outro idiota qualquer que queira nos vender um pouco da sua melodia cor-de-rosa em baratas prestações, talvez numa encadernação luxuosa da mais pura auto-ajuda. E só o que podemos fazer é sorrir com desprezo e ficar sem entender como é que alguém tão idiota, com um papo tão idiota, pode estar ali, na sua frente, numa folha de papel ou tela de televisão, tentando te enganar com um sorriso besta. Daí você olha para o lado de fora da janela e vê uma cidade cinzenta com pessoas tristes e derrotadas e de vozes mudas, e sente o cáustico saco cheio corroendo por dentro. E então dá um arroto e se arruma para ir trabalhar.
Dias assim, que te despejam decepção na cabeça, são mais comuns do que pensam os poetas. Dias assim me encontram na esquina, e te encontram na esquina, meu amigo, e encontram quase todo mundo na esquina. Não são os únicos dias que existem, mas sem dúvida são dias que existem.
Às vezes, a única poesia que você pode escrever é sobre o cara que dormiu debaixo do toldo, com a cara atolada no prato, é sobre a velha que espera o ônibus num beco desolado, é sobre o garoto solitário que volta pra casa a pé numa noite de sábado porque não passa ônibus de madrugada, é sobre as ruas molhadas brilhando com a chuva que inundou a cidade de lama, é sobre a janela aberta de manhã, sem horizontes, sem prédios ou gente, é sobre o saco cheio.

domingo, 17 de maio de 2009

E.F.A.


O que me irrita é a quantidade de escritores frustrados que têm por aí. Eles te esperam nos cantos mais remotos. Por trás dos muros, nas esquinas, nos telefones públicos e na segurança covarde das correspondências. Eles se dedicam a encher o teu saco, a te fazer bocejar de tédio, caso você seja um sujeito com um pouquinho de realização pessoal. Eles tentam afundar você, como se estivessem frente a um Titanic. Mas eles não são icebergs. São apenas escritores frustrados e nada mais.
Esse tipo de gente sonha em ter um livro publicado, em ter os seus nomes em cartaz, sonham em poder escrever “artista” no espaço em branco onde escrevem desempregado ou acadêmico ou crítico ou... intelectual... Ha, ha. Esses caras sonham em ser alguém. Por isso se dedicam a encher o teu saco, porque você está roendo o osso que eles gostariam de roer. Tristes figuras.
Outro dia fiquei pensando nesse tipo de coisa. Foi quando recebi um e-mail de um sujeito anônimo (nunca se identificam... acho que acreditam estar preservando os seus nomes para quando forem superstars...) com aquele papinho besta de sempre: você não é escritor... blá blá blá... você precisa ser acadêmico... blá blá blá... os jovens não compreendem a literatura... blá blá blá... literatura é coisa hermética... é quase uma maçonaria...blá blá blá... e por aí vai. Que toupeira.
Esses sujeitos transitam pela arte como se estivessem pisando em ovos. Sofrem para escrever um parágrafo. Suam para criar. Deviam ser joalheiros ao invés de escritores. Assim poderiam continuar com suas fúteis lapidações até o infinito. Não que eu seja contra retoques. Mas, meu amigo, lugar de floreio é em novela mexicana. Cada macaco no seu galho. Atravesse a rua caso encontre algum desses tipos. Se você é ou vai ser um escritor, não perca tempo com sujeitos assim. Se quiser acreditar em alguém, acredite em Rimbaud, e não em algum pobre coitado com mestrado em Rimbaud. Acredite em quem vive, e não em quem teoriza sobre a vida. Arte se vivencia, não se estuda. Técnica se estuda, e nada mais que isso.
Então sentei na cadeira e fiquei pensando nesse tipo de gente, nesses escritores frustrados, e acabei chegando à conclusão de que o melhor para eles seria fundar um grupo de apoio. Um grupo de apoio onde os escritores frustrados pudessem se reunir e chorar suas mágoas e se ajudarem uns aos outros. Poderia se chamar E.F.A. Escritores Frustrados Anônimos. Seria uma boa. Eles se juntariam aos sábados à noite (já que nenhum deles tem coisas a fazer nos sábados à noite), e remoeriam suas lamúrias. Diriam coisas do tipo: meu nome é Zé da Silva, sou um escritor frustrado e há uma semana não encho o saco de ninguém. E todo mundo bateria palmas. Lágrimas, palmas, conselhos, consolos. A associação dos escritores frustrados.
Acho que deve existir esse tipo de gente em todo lugar. Pessoas assim são como sombras, asas negras. Para cada escritor, existe um escritor frustrado; para cada ator, existe um ator frustrado; para cada pintor, para cada jornalista, para cada matemático, para cada auxiliar de limpeza, existe um frustrado para encher o saco. E eles estão consumidos pelo rancor de maneira tão intensa, tão cáustica que já não enxergam mais a arte, não enxergam mais a vida. Tudo que enxergam são os seus estúpidos propósitos. E as suas mágoas, que para eles soam como a Divina Providência. Logicamente que não tomam qualquer providência em suas pobres existências. Logicamente que não sabem o que é divino.

ADÁGIO CANINO

Minha cachorra morreu. Vocês são as primeiras pessoas para quem estou falando isso. Foi num dia em que eu não estava aqui. De noite.
O que tenho a dizer sobre ela? A melhor cachorra que já existiu no mundo. A mais verdadeira. Não esperava nada de mim além de ser amada... e amava sem condições, sem intenções ou pretensões.
Ela me olhava com seus olhos castanhos transparentes e sorria, sempre sorria. E então era como se falasse comigo... numa linguagem que ninguém mais fala, a linguagem que existe nos meus segredos, por trás de todo o meu silêncio. Linguagem que vocês acreditam escutar nos meus textos; mas, que me desculpem, vocês estão passando longe, rapaziada.
Era o tipo de cachorra que estava sempre por perto quando você acorda, que vai até a sua cama e verifica se você está bem e depois deita no chão, ao seu lado. Ela era a minha cachorra e a cachorra de todos aqueles que acreditam que pode existir o amor, mesmo quando não existe mais nada para se acreditar.
Então eu estava lá, jogando cartas com meus amigos naquela noite (por que não fiquei em casa?). E assim que entrei na sala descobri que ela havia morrido. Era epilética. Uma das epilepsias mais fortes jamais registradas.
Toda aquela vida intensa se foi; todo aquele amor incondicionado pela simples existência não existe mais; toda aquela alegria sem impurezas, refletida num sorriso silencioso, acabou. Ainda assim retirei um poema do meu caderno. E coloquei com ela quando a enterramos. Alguns de vocês vão dizer "mas que estupidez, um poema para um cachorro!", mas não me importo. Não me importo com aqueles que vão achar estúpido. Coloquei o poema junto a ela e então a enterramos. Um poema que servirá de companhia quando ela estiver atravessando as fendas abissais da eternidade e quando estiver no mais remoto recanto onde não existe o tempo, somente a escuridão. O poema que será a minha mão acariciando seus pêlos; que será a minha presença, indo com ela para onde quer que ela vá.
Dizem que sou um cara que não demonstra os sentimentos. Não chorei nem rezei quando ela morreu. Apenas escutei a notícia, e não sorri. Mas essa é só meia-verdade. Eu chorei, e eu rezei, quando escrevi o poema para ela. Eu sempre choro, rezo, quando escrevo. Acho que é isso que chamam de "sagrado". Escrever é sagrado para mim. Minha cachorra também é sagrada. Foi por isso que dei a ela um poema, porque é só o que há de sagrado em mim. Eu chorei, e eu rezei, quando escrevi o poema. E me coloquei ao lado dela, para acompanhá-la ao longo do mistério do infinito.
Um dia eu também vou morrer, e vão cruzar os meus braços sobre o meu peito. Um dia eu vou ser tudo o que não é. E por isso eu dei a ela um poema, a minha rebeldia. Dei a ela um poema porque é o que há de imortal em mim; é a única coisa na qual a morte não pode pôr as mãos.
Mel, eu estou aqui ao seu lado, enquanto você coloca a cabeça sobre a terra fria da natureza. Estou ao seu lado, enquanto os dias passam silenciosos por dentro da areia e apagam a sua silhueta. Eu estou aqui, enquanto você pisa com suas quatro patas na carência do tempo e do espaço. Estou aqui, irritando a morte com meu desdém, fazendo-a perceber que ela não é maior que todas as coisas, mostrando que existem certas coisas em mim, em todo mundo, que ela não pode tocar, pode apenas olhar. Estou aqui enquanto você late pelos túneis escuros e ecoantes das lembranças. Estou aqui, chorando, rezando. Ou melhor, acariciando seu pêlo.
IN MEMORIAM
Annie, Billie Jean, Alone, Mel, Nigra.

SMALL PROBLEMS

As pessoas costumam se preocupar com problemas pequenos. Pra falar a verdade, quase sempre nos preocupamos com problemas pequenos. E não estou me excluindo de nada, acho que sou o mestre das dores de cabeça, dos torcicolos, das taquicardias e agonias, por coisas pequenas, coisas sem importância. Mas afinal, não é sempre assim? As grandes tragédias são grandes apenas na televisão, mas não são capazes de nos arrebatar. Eu sei, é duro de ouvir, mas que é verdade, é.
As grandes tragédias estão aí, por toda parte, sempre distantes. Bombas explodindo na aridez dos desertos, epidemias infestando vilarejos africanos, a vida correndo frenética e as dores de todos os miseráveis. Em qualquer canal de tevê, em qualquer conversa de botequim, o que não falta é grande tragédia. Mas no final, o que nos deixa com enxaqueca, o que endurece nosso pescoço, são as pequenas coisas, os nossos próprios egoísmos. Dedicamos nossa solidariedade às grandes tragédias, e até nos indignamos com elas nas mesas dos jantares sociais, mas não perdemos o sono pelos grandes problemas. Eles fazem parte do nosso lado racional, mas não do emocional. E se você disser que não é verdade, se disser que perde o sono e se remói com as grandes tragédias, está mentindo.
No fundo, somos como Hamlet. Garotinhos mimados fazendo pirraça porque a mamãe se casou de novo. Somos como Hamlet e todos os personagens do velho Will: pessoas comuns, com vidinhas comuns e problemas comuns... E chorando por causa disso.
As maldições do homem comum são sempre pequenas, banais, se prefere chamar assim. É a falta de trocado para o ônibus, o tédio de um final de semana, o calor numa tarde de trabalho árduo, o amor banalizado por historinhas baratas e a decepção por descobrir que ninguém cabe nos seus sonhos. São os nossos problemas. As bombas arrebentando com o deserto? Simplesmente falamos “é uma pena, não?”. Mas claro que ninguém vai admitir. Ninguém quer se passar por um tremendo canalha.
E mais uma vez me deparo com o fim do ano, e me concentro nas bombas atômicas que ardem nos porões, nas pestes extinguindo o ser humano, e digo “está tudo errado”. Digo “é uma pena, não?”. Fecho a janela e me espreguiço, relaxando o pescoço imobilizado por um torcicolo, e digo a mim mesmo que preciso parar de me preocupar tanto. É estranho, mas acho que as bombas não foram as responsáveis pelo meu torcicolo, nem mesmo a miséria dos países do terceiro mundo. Estou com o pescoço endurecido pelos pequenos problemas. Eles acabam comigo. E tem muita gente como eu por aí, tomando aspirina, tentando relaxar o pescoço, tirando um cochilo ou procurando ar puro, e não estão pensando nas grandes tragédias. São os frutos dos problemas pequenos. Pequenos Hamlets vagando pelo mundo. Um bando de gente coitada que, como disse Cazuza, chora sozinha num banheiro sujo.
Então, o meu toque pra você, meu amigo, é que nesse fim de ano procure se preocupar um pouco menos com os problemas pequenos. Você está sem grana, mas está vivo. Ela não te ama, mas você ainda pode se olhar no espelho todas as manhãs. Já se cansou da decoração da sua sala de estar, mas ainda virão mais salas para você estar.
Esse é o meu toque. Não vou dizer para você se preocupar com as grandes tragédias, apenas para se preocupar um pouco menos com as pequenas, porque assim as grandes passarão a fazer sentido, e deixarão de ser apenas um tópico nos jantares bacanas. Quem está dizendo isso é um cara com torcicolo, um cara que se preocupa demais com problemas pequenos.

O AMOR É UM ÔNIBUS LOTADO

Muita gente se apaixona. Muita gente ama, é o que diz qualquer programa vagabundo na tv. Muita gente espera sozinha, ansiosa, na porta do colégio, até tocar a sineta... e depois perde a hora do almoço. Muita gente senta no meio-fio, sentindo o estômago revirar por dentro. E muita gente ensaia palavras; as escreve num papel e decora ao longo da tarde, antes de pegar no telefone. Não sei, pra mim isso me lembra uma multidão sufocada. Então agora vou falar para essas pessoas. Vou cantar um blues.
O amor é como um ônibus lotado. Você espera e espera, debaixo do sol da tarde, enquanto os carros passam pela estrada na direção de qualquer lugar. Você não é o único. Outros esperam com você. Esperam pelo amor, pelo ônibus lotado, para saltar no ponto errado. Apenas um bando de pobres coitados com os rostos murchos de tanto esperar. E ele chega, ele sempre chega, o amor, esse ônibus enferrujado soltando fumaça preta pelo carburador... chega atrasado.
Você é o último da fila; conta os trocados e se espreme na multidão suada que luta para sobreviver, que quer apenas chegar ao seu destino e saltar em algum lugar que possa chamar de lar. Todos gritam e dividem o mesmo ar abafado. Estão sufocados pela mesma agonia, mas não podem fazer nada. Não podem sequer abrir as janelas. Não há nenhum assento vazio, nenhum lugar onde possam sentar. Você vai ter que se agüentar em pé, xará, e rezar para que a viagem não seja longa. Rezar para que a viagem não seja para algum lugar nenhum. Mas todas as viagens são longas quando estamos num ônibus lotado.
Lá fora cai uma chuva torrencial, uma chuva que inunda a cidade, e você se pergunta se ela não seria melhor do que o inferno quente e abafado que te engole vivo. Não, não seria melhor. Ao menos o seu inferno é um inferno em movimento. Um ônibus lotado; repleto de passageiros caindo por cima de você como uvas podres e respirando diante do seu nariz, com o hálito seco dos miseráveis. Enfim, pessoas como você, que se agüentam em pé, esperando por um lugar vago.
Você olha pra trás e enxerga a cidade que se torna menor, que desaparece no fundo do horizonte. Agora você está sozinho, sozinho nessa multidão de solitários, rumo a qualquer lugar. Tudo é estrada. E por um momento você desconfia de ter entrado no ônibus errado. Talvez ele não pare no seu ponto, talvez continue andando para todo o sempre, buscando pessoas cansadas em pontos vazios. Talvez o amor não tenha destino certo. E talvez ele não se importe com a chuva que desaba sobre a cidade.
É isso o que penso quando falam de amor. Ou melhor, talvez não, mas é o que estou pensando agora, enquanto me seguro nesse ônibus lotado que vai ao centro da cidade. Igualzinho ao amor, foi o que pensei. Igualzinho a isso que todos esperam em seus pontos desertos, ao longo da tarde, segurando sacolas que marcam suas mãos e limpando o suor com a manga da camisa.
E não sei por que escrevi sobre um tema tão manjado. Detesto temas manjados, e não gosto de parecer meloso. Mas acho que dessa vez fui meloso.
Então é isso. Esse foi o meu blues. Meu amigo, o amor é uma viagem lotada, lotada de gente igual a você, gente cansada que não quer esperar muito. Uma multidão em pé, compartilhando ilusões e esperanças, roçando o suor numa nojenta agonia. Você olha pra frente e encontra uma cadeira vaga; agora é a sua vez, pode comemorar. É, o amor é exatamente como um ônibus lotado. Quando finalmente você consegue uma cadeira, é obrigado a ceder o lugar para alguém mais velho, mais doente e mais cansado que você.

B DE BYRON

Um cara me disse que eu daria um ótimo poeta romântico. De acordo com ele, me encaixo no perfil da molecada do romantismo.
Lá estava eu, na rua, numa noite de chuva e calor, encharcado e sem guarda-chuva, enquanto ele me falava sobre o quanto eu me encaixava no perfil dos românticos...
_ Você tinha que ter conhecido esses escritores! Olha só, você é jovem, não se importa com as regras literárias, está sempre admirando musas inatingíveis e escreve! Você é um poeta romântico! – ele disse empolgado.
Fiquei na minha e não respondi nada. Não falei para ele que não me considerava tão jovem e que não descartava todas as regras literárias e que minhas musas não eram inatingíveis. Não falei nada disso. E, claro, também não o lembrei do absinto. Eu não bebo absinto, o que me deixa de fora da categoria dos românticos.
O cara estava realmente muito empolgado com toda aquela conversa. Falava e gesticulava como se estivesse diante de uma espécie rara de animal, o último de uma espécie já extinta ou algo assim. Acho que, na verdade, apenas se divertia com a possibilidade de conversar com um poeta romântico. Eles sempre se divertem.
Depois de alguns minutos de conversa tediosa, deixei-o para trás e fui vagar por outras bandas. Sentei debaixo de uma marquise, esperando a chuva passar, e continuei pensando nas coisas que o sujeito tinha falado.
Não concordava com nada. Não entendia a maneira como ele me comparava com os poetas românticos, que não são nem mesmo os meus preferidos. Sempre achei uma babaquice da parte deles o fato de se enterrarem em tavernas e morrerem de tuberculose só porque “meu pai quer que eu me forme” e “ela não me ama, oh, oh, ela é tão linda!”. E acima de tudo, nunca entendi como agüentaram calados toda aquela esculhambação por parte dos parnasianos. É, não passavam de verdadeiros babacas.
Prefiro os surrealistas e os dadaístas. E os simbolistas. Preferia ser comparado a Rimbaud que um belo dia olhou para a literatura e disse “quer saber? que se dane!”, e foi embora para o deserto. Melhor do que morrer na calçada, embriagado de absinto. De qualquer forma, não gosto desse negócio de corrente literária. Correntes são correntes, e acabam te prendendo.
Duvido que um simbolista se achasse um simbolista, e que um dadaísta se achasse um dadaísta e, muito menos, que um romântico se achasse um romântico. Ora bolas... dizemos que Rimbaud é simbolista só porque enxergava bebedeiras nos navios? Por acaso um barco não pode estar bêbado? E quanto aos dadaístas? Eram dadaístas apenas porque gostavam de picotar a poesia e atirar tudo para o ar? Poesia é poesia, picotada ou não! Se você quer transpassá-la com uma lança, ninguém pode te impedir! Transpasse-a com uma lança! Os românticos também não estavam preocupados em serem poetas românticos, eram apenas moleques com dor de cotovelo!
Fiquei pensando nessas coisas debaixo da marquise, enquanto a chuva desaguava. A inutilidade das correntes literárias me atormentava, e sentia vontade de rasgar em mil pedaços cada livro sobre literatura que existe no mercado.
Depois de um tempo encontrei o sujeito que gosta dos românticos, e então falei:
_ Você se esqueceu de um detalhe.
_ É mesmo? O quê?
_ Os poetas românticos morriam adolescentes.
_ E daí?
_ Eu estou vivo.
Pronto. Não havia mais dúvidas a respeito de minha identidade literária. Eu não era um poeta romântico. Eu sou um poeta vivo. E muito vivo.

THE LAST DANCE

Acordei num dia de despedidas. Acho que é coisa do fim do ano. Ele faz isso com a gente, despede-se. E transforma tudo em despedida. Não sei, mas acho que a maioria das pessoas consegue lidar com o calendário simplesmente se escondendo detrás dos presentes de natal, das luzes das vitrines e dos planos para as férias.
No entanto, o tempo passa como um tufão, desalinhando os cabelos, gritando nas primeiras horas da manhã, quando abro os olhos e me dou conta de quantas coisas já passaram! E esse texto é sobre o tempo. E sobre o fim do ano. E sobre as despedidas. Elas estão presentes quando pensamos no tempo. Estão presentes quando desembrulhamos presentes com o estômago embrulhado. O tempo com suas despedidas é um eterno gosto amargo. E escuto sua voz cada vez que entro num shopping center ao som de uma canção de natal.
Assim que percebemos o tempo sobre nossas cabeças, deslizando pelo ar dos desavisados, desistimos de planejar as férias. Porque quando existe o tempo, tudo é uma perda de tempo. O tempo é uma perda de tempo. É um soco no queixo. É quando você acorda suado no final de semana e abre a janela e procura não olhar para as ruas que conhece, por saber que não vai encontrar ninguém.
No fim do ano tudo fica um pouco mais intenso. A respeito do tempo, quero dizer.
As despedidas nos fazem correr, como se estivéssemos andando numa corda bamba ou num trilho de trem. Todos se despedem, apertam as mãos e dizem “até outra vez”; compram suas passagens, pegam seus diplomas, e crescem. Crescem, confundindo o amadurecimento com o simples e banal envelhecimento. E não estou falando de mim, nem de você que está me lendo agora, com a barba por fazer de um dia de sábado e os olhos pesados de uma semana passada. Não, estou falando de todos nós. De nós que nos despedimos e nos abraçamos, sem saber para onde vamos. Apenas seguindo o vento sorrateiro do tempo.
É por isso que agradeço por me chafurdar em notas finais. Desde a época do colégio é assim, fico pendurado nessas notas. Com a faculdade não é diferente. Mas acho que há males que vêm para o bem.
Não me ocupo com as despedidas quando estou me desesperando com conceitos e doutrinas dentro de um quarto, numa tarde de calor. Apenas as escuto, enquanto Jim Morrison canta Light My Fire no aparelho de som. Ele é a lembrança do tempo no meu quarto, porque está morto e continua cantando. Talvez seja a constatação das despedidas, ou apenas mais um antigo hit das paradas de sucesso. Seja como for...
Então, como estava dizendo, acordei num dia de despedidas, sentindo-me fraco, com a língua pesada dentro da boca e escutando tosses por todos os lados. E isso me irritou. A maneira como os dias atravessam os anos, calados, despedindo-se de todos. O modo como o tempo ludibria os pobres filhos de Deus escondidos em suas tocas e afazeres. E senti vontade de rir ao me lembrar daquela imagem das três velhas gregas, aquelas que nasciam velhas e gargalhavam, meio loucas, revezando um único olho e um único dente. Esses gregos sabiam das coisas. Dariam grandes humoristas, mas acabaram tornando-se filósofos. Foi mais fácil.
Decidi que não vou mais acordar nas manhãs de despedidas. Não vou me despedir de nada, nem de ninguém. O fim do ano não termina com coisa alguma, não nos leva para lugar algum. O fim do ano é apenas mais um dia em que dizemos tchau, planejamos feriados, desaparecemos no horizonte, recebemos diplomas, nadamos na praia, mergulhamos no futuro e nos desesperamos. Então, feliz natal antecipado para todo mundo.

SAPATOS DE BARRO



Hoje vou contar uma das antigas. Ainda estava na escola, na sexta ou sétima série. A professora passava de carteira em carteira recolhendo poemas. Sim, poemas. Um concurso literário que todo mundo era obrigado a participar. Caso não quisessem tomar um zero no boletim, todos tinham que entregar um poema.
Não ligava muito para poemas. Minha atenção estava voltada para a menina mais linda da classe. Gostava dela, só que não tinha coragem de me aproximar.
Na verdade, não dava a mínima para poemas. No entanto, não queria encarar uma temporada no grupo seleto dos “alunos em recuperação”, e então me desesperei quando vi a professora recolhendo os malditos poemas. Eu não tinha escrito nada! Nem uma única linha! Nem uma droga de uma estrofe! E precisava de um poema, custasse o que custasse! Arranquei uma folha do caderno e comecei a escrever qualquer coisa que me vinha à cabeça (não sabia na época, mas esse método me acompanharia pelo resto da vida).
O primeiro título que pensei foi “Sapatos de Barro”. Resolvi adotá-lo, já que de qualquer maneira não conseguiria pensar em nada melhor. Agora só faltava escrever alguma coisa que se encaixasse no título. Então comecei a escrever frases como “...ele calçava sapatos sujos de barro...”, inteiramente movido pelo desespero. Versos são fáceis de escrever, ao menos quando se está desesperado.
A professora se aproximava cada vez mais. Minha sorte é que eu estava sentado na última carteira da última fileira, caso contrário jamais teria conseguido terminar a tempo.
Estava pronto! Meu primeiro poema, Sapatos de Barro, estava pronto, e não me orgulhava dele! Apenas suspirava aliviado por ter escapado do enorme zero vermelho no meu boletim.
Não era lá muito bom. Alguma coisa sobre um garoto que tinha sapatos sujos de barro e que um belo dia consegue fama e fortuna, mas acaba sentindo saudades dos velhos sapatos sujos de barro. Nada de mais, apenas besteira pueril de pré-adolescente.
Entreguei a droga do poema e procurei esquecer do assunto. Poesia era coisa do passado. Coisa de mulherzinha.
Alguns dias depois fiquei sabendo que o tal do “Sapatos de Barro” tinha sido classificado no tal do concurso literário. Disseram que eu teria que comparecer na premiação, porque eu podia ganhar. O poema estava definitivamente me metendo em encrencas. Agora perderia a noite de sábado, assistindo a uma premiação que provavelmente não me renderia nem mesmo o troféu abacaxi.
Mas o negócio é que o “Sapatos de Barro” ficou entre os finalistas e acabou ganhando o tal concurso. Primeiro lugar.
Levantei da cadeira sem acreditar no que tinham acabado de fazer. Dar o primeiro lugar a um poema escrito às pressas por um garoto que apenas queria se livrar da recuperação era realmente uma tremenda doideira! De qualquer forma, eu é que não recusaria um troféu. Duvido que fossem capazes de me colocar em recuperação, agora que eu tinha o primeiro lugar.
Ainda guardo o troféu na minha estante, um negócio de mármore onde se lê “primeiro lugar do festival literário do ano tal”. Guardo-o como um amuleto. Um amuleto para atrair inspirações, para me lembrar de que as melhores idéias às vezes surgem nas piores circunstâncias. Surgem sem pretensões, surgem desclassificadas, enquanto você presta atenção na menina mais linda da classe.
Ainda tenho o troféu. Mas não tenho o poema. Não importa.

QUERO SER O SEU CACHORRO


Há certos dias em que você escreve na calada da noite. Ao som dos Stooges, com Iggy Pop berrando no seu ouvido que agora ele quer ser o seu cachorro. Dias assim estão repletos de baboseiras. São dias de tardes ensolaradas. Dias tediosos de carros que cruzam as avenidas como baratas de metal e pessoas observando vitrines decoradas para o Natal (rimou, não é?). Nesses dias não existem sentimentos, apenas sensações, sensações de que de alguma forma estamos existindo. Apenas existindo. Sensações que se confundem com o calor insuportável.
E hoje sou um sobrevivente desses dias. Não sou um artista, nem mesmo um escritor, sou apenas um sujeito que repara demais em tudo o que acontece. E no “nada absoluto” que insiste em acontecer. Qualquer desocupado, com os olhos um pouco mais abertos, seria capaz de escrever sobre esse tipo de coisa. Vocês sabem, baboseiras. As baboseiras que provocam ânsias de vômito.
Pense em mim como um vira-lata, ou um urubu, se preferir. Alguém que escreve sobre aquilo que os outros jogam fora, junto com os restos e as sobras. É isso o que sou, alguém que fuça na lixeira dos poetas e pega o lixo. Carrego na minha boca cheia de baba os dias ensolarados das baboseiras. Corro pelas ruas com o lixo pendendo nos meus dentes, diante de olhares indignados, de caras de nojo. Alguns me enxotam, dizendo “Passa! Passa!”. Naturalmente que com medo de mim e da minha sujeira.
Faço isso porque alguém tem que fazer, não é? Ou será que somente os trágicos heróis, os finais felizes, os horizontes dourados e as musas são dignos de textos? Acho que não.
Então, meus amigos, por favor, não me peçam um final feliz. Não me perguntem sobre as musas. Porque senão vou ser obrigado a lhes dizer que as musas não são inatingíveis e não flutuam pelo céu azul. Elas estão atravessando as calçadas, pedindo um trocado no meio-fio, tomando um soco na boca do estômago, suando em bicas debaixo do sol escaldante ou pedindo para ser o seu cachorro. Essas são as musas que os artistas colocam num saco plástico e entregam para o caminhão de lixo.
Essas são as musas que ofereço a vocês. Musas das quais se escreve na calada da noite.
E depois ainda tem gente que diz por aí que o mundo está carente de musas. Bah! Grande piada! O mundo está repleto de musas. Ele está carente é de poetas. Os poetas e artistas acabaram se transformando em pessoas que acordam às dez horas da manhã e colocam o lixo no lado de fora, reclamando do calor e amaldiçoando o mau cheiro. Tudo em prol da arte – é o que eles gostam de dizer.
Comigo não. Não quero ser artista, colocar o lixo para fora e ficar dentro de casa admirando musas de cristal. Prefiro ser um cachorro, um cachorro vira-lata vadiando pelo mundo, que sai por aí revirando latões e abocanhando restos.
Aqui estou eu, no dia em que morreu o cara da Palestina, falando a respeito de Iggy Pop e de como ele pede ao mundo para ser o seu cachorro.
Isso me lembra de uma crítica que recebi um dia desses. Um sujeito muito distinto, o tipo do cara que bota o lixo para fora todas as manhãs, me disse que eu era um idiota, que só escrevia baboseiras. Talvez ele esteja certo. Mas, pensa bem, se baboseira fosse poesia, eu seria Shakespeare. E meu amigo, se quer saber de uma verdade, talvez baboseira seja poesia.

THE BEGINNING OF ALL



Costumo andar sem rumo pelas ruas de Friburgo. Gosto de fazer isso porque as pessoas não sacam que eu sou um escritor. Melhor assim. Elas tornam-se nojentas quando descobrem que você faz alguma coisa, alguma coisa além de vegetar, quero dizer. Gosto de observar os seus rostos me observando por detrás das vitrines e das janelas, como se eu fosse a droga de um andarilho vagabundo ou qualquer coisa assim. Na verdade esse é o grande problema de Friburgo: o seu formato circular. A cidade não ajuda aqueles que desejam apenas vagabundear por aí, caminhando de um lado para o outro, pois não existem muitos lugares onde se possa fazer isso. No final, você acaba perambulando eternamente pelas mesmas ruas, o que faz com que você fique extremamente exposto e se passe por um desocupado. E no fundo é isso o que eu sou, um moleque desocupado, que não se preocupa com a faculdade e com todo aquele papo de futuro, e que escreve uma ou outra coisinha nas horas vagas. Um moleque desocupado de 26 anos, cansado de acordar nas manhãs ensolaradas de tédio, sem absolutamente nada para dizer.
À noite passada foi um pouco diferente, pois encontrei esse cara, um completo idiota parado na frente de um pequeno pub que não vou citar o nome por razões óbvias. Eu estava parado por lá, esperando por um bando de amigos, e pude notar que o sujeito me olhava fixo, com um sorriso idiota nos lábios. Aquilo começou a me incomodar, mas não falei nada, apenas continuei onde estava, esperando pelos meus amigos.
Depois de alguns minutos me observando o cara se aproximou e disse, “você é o escritor, não é?”. Olhei para ele e procurei aparentar uma falsa confusão mental, e então lhe disse, “como é que é?”.
_ O cara que escreveu o livro que tão anunciando por aí!
Ele estava obviamente querendo tomar todo o meu tempo.
Não sou do tipo que gosta de iniciar conversas com desconhecidos, então apenas falei que eu era um estudante universitário sem um futuro brilhante no mundo acadêmico. Ele não desistiu e falou mais alto: “Tá legal, mas você escreveu o tal do livro que eu li no jornal!”
_ Escrevi_ eu disse desanimado.
E foi então que o imbecil se tornou um exímio imbecil, colocou os braços ao redor dos meus ombros e me encaminhou na direção onde estavam os seus amigos, sempre gritando coisas do tipo “esse aqui é escritor!” e blá blá blá. Apresentou-me um a um aos seus amigos e me despejou todas as congratulações que sua mente pequena conseguiu formular.
Eles me fitavam, o grupo de amigos de rostos vermelhos e inchados, sorrindo feito uma matilha de palhaços. Todos eles esperando que eu lhes dissesse alguma coisa brilhante, mas eu não tinha nada brilhante para dizer. Tudo o que conseguia pensar era na minha vida de moleque desocupado, e em como eles estavam enganados a meu respeito, a respeito de todos os escritores, todos os artistas. Na verdade a arte é constituída inteiramente de moleques desocupados sem nada de brilhante para dizer.
Quando um deles me pediu um poema, resolvi tirar um sarro e declamei a melhor coisa que consegui pensar:
Ele se suicidou
numa quarta-feira à tarde.
Deixou um bilhete
em cima da cabeceira,
onde se lia:
não suportei
minhas hemorróidas.
Nem te digo o prazer que me deu em ver aquelas caras sérias, repletas de dúvidas, sem palavras, decepcionadas por eu ter acabado com as suas expectativas literárias. Aquilo era ótimo! A melhor coisa que me acontecera na droga da noite!
Os amigos esboçaram um sorrisinho amarelo e falaram que o poema era legal, meio que por educação. Embora o poema (poema???) fosse de minha autoria, eu lhes disse que Shakespeare tinha escrito o negócio, só para frustrar-lhes ainda mais.
Finalmente estava livre dos imbecis, e não demorou para que a galera que eu esperava chegasse. Respirei aliviado.
Saímos dali e perambulamos pelas ruas. Quando um deles me perguntou se eu tinha ido ao show do The Doors, eu disse que não, porque nesse dia estava lançando um livro.