A rua estava coberta de lama, e todos se divertiam. Sorriam, engoliam cerveja e rolavam pela água do esgoto. O som que pairava no ar era o das risadas e de alguns gritos ocasionais. Ainda não tinham começado a tocar as estúpidas músicas de axé. Era só o início do carnaval, e já estávamos cobertos de lama até o pescoço.
Cheguei no centro por volta das nove. Estava com fome e queria comer alguma coisa no shopping, mas era impossível atravessar a rua. Ela tinha se transformado no fluxo de um rio. Além disso, o shopping estava alagado. O shopping estava alagado e as ruas tornavam-se mar. Virei para o meu amigo, Luyalan, um bom sujeito, um cara grandalhão que compartilha do meu sarcasmo e do meu senso de humor maníaco, e falei:
_ Acho melhor a gente ir pra São Pedro.
Ele analisava a rua, os bueiros cuspindo água suja como se vomitassem em cima dos foliões.
_ Talvez você tenha razão. Mas como vamos voltar de lá?
_ Não sei, mas dane-se. Olha só pra isso. Pior não pode ser.
Nenhum de nós estava disposto a enfiar o pé no esgoto. Não estávamos apropriadamente trajados para isso. Pegaríamos o próximo ônibus.
_ Se vamos ir, é melhor a gente ir logo. Daqui a pouco vai começar o axé e a coisa toda vai se transformar num verdadeiro inferno – eu disse.
Não tínhamos nada contra o carnaval. Estávamos dispostos a nos divertir, no duro. Estávamos dispostos a escutar axé music pelos próximos quatro dias, mas tudo muda de figura debaixo de lama.
Luyalan contemplava a frustração carnavalesca, a persistência dos bêbados que mergulhavam nos dejetos em troca de algumas risadas, e lembrou-me de que talvez São Pedro não estivesse muito diferente. São Pedro era noventa por cento de terra batida, e devia ter se transformado num pântano. “Que droga, você tá certo”, lamentei.
Para piorar, a chuva apertava. Luyalan começava a se desesperar, e ficava repetindo para si mesmo “isso não é um carnaval! Isso não é um carnaval!”. Eu também não me sentia nos meus melhores dias, mas procurava me conformar. Afinal, como contrariar a chuva? Como contrariar as forças da natureza, que não se importam com os feriados? Não nos restava nenhuma alternativa, tudo que podíamos fazer era esperar. Nos ajeitamos debaixo de uma pequena marquise e ficamos ali, parados, pela maior parte da noite. Encontramos com um punhado de amigos, mas já estavam muito bêbados para nos reconhecer. Enquanto aguardávamos pelo fim do primeiro dia de carnaval, rabisquei um poema num pedaço de papel. Ficou mais ou menos assim:
a vida é como um dia de chuva,
você espera
e espera e espera,
até que possa sair pra rua
e enfiar o pé na lama.
Aquilo me fez rir. Era o tipo de poema que me divertia, o tipo que ofendia a maioria das pessoas. Por algum motivo elas me preferem lírico. Sim, escrever o troço me distraiu por alguns minutos.
A chuva não passou e alagou a cidade. O carnaval, ao contrário, passou, debaixo de lama, de risadas, de divertimentos esporádicos.
Na madrugada do último dia vi um travesti sentado num bloco de pedra. Parecia ter acabado de sair do desfile, pois não vestia nada além de uma tanga decorada com paetês e purpurina. Sentava-se curvado, com o rosto escondido nas mãos, numa posição de lamento. Uma pena azul pendia da sua cabeça careca. Talvez ele fosse o carnaval, alguém sem sexo e sem tempo que senta choroso num bloco de pedra no meio da noite, ou talvez apenas um travesti lamentando por tudo o que perdia, por tudo o que eternamente perdia.
Esse foi o carnaval. Lírico o bastante pra vocês?
Cheguei no centro por volta das nove. Estava com fome e queria comer alguma coisa no shopping, mas era impossível atravessar a rua. Ela tinha se transformado no fluxo de um rio. Além disso, o shopping estava alagado. O shopping estava alagado e as ruas tornavam-se mar. Virei para o meu amigo, Luyalan, um bom sujeito, um cara grandalhão que compartilha do meu sarcasmo e do meu senso de humor maníaco, e falei:
_ Acho melhor a gente ir pra São Pedro.
Ele analisava a rua, os bueiros cuspindo água suja como se vomitassem em cima dos foliões.
_ Talvez você tenha razão. Mas como vamos voltar de lá?
_ Não sei, mas dane-se. Olha só pra isso. Pior não pode ser.
Nenhum de nós estava disposto a enfiar o pé no esgoto. Não estávamos apropriadamente trajados para isso. Pegaríamos o próximo ônibus.
_ Se vamos ir, é melhor a gente ir logo. Daqui a pouco vai começar o axé e a coisa toda vai se transformar num verdadeiro inferno – eu disse.
Não tínhamos nada contra o carnaval. Estávamos dispostos a nos divertir, no duro. Estávamos dispostos a escutar axé music pelos próximos quatro dias, mas tudo muda de figura debaixo de lama.
Luyalan contemplava a frustração carnavalesca, a persistência dos bêbados que mergulhavam nos dejetos em troca de algumas risadas, e lembrou-me de que talvez São Pedro não estivesse muito diferente. São Pedro era noventa por cento de terra batida, e devia ter se transformado num pântano. “Que droga, você tá certo”, lamentei.
Para piorar, a chuva apertava. Luyalan começava a se desesperar, e ficava repetindo para si mesmo “isso não é um carnaval! Isso não é um carnaval!”. Eu também não me sentia nos meus melhores dias, mas procurava me conformar. Afinal, como contrariar a chuva? Como contrariar as forças da natureza, que não se importam com os feriados? Não nos restava nenhuma alternativa, tudo que podíamos fazer era esperar. Nos ajeitamos debaixo de uma pequena marquise e ficamos ali, parados, pela maior parte da noite. Encontramos com um punhado de amigos, mas já estavam muito bêbados para nos reconhecer. Enquanto aguardávamos pelo fim do primeiro dia de carnaval, rabisquei um poema num pedaço de papel. Ficou mais ou menos assim:
a vida é como um dia de chuva,
você espera
e espera e espera,
até que possa sair pra rua
e enfiar o pé na lama.
Aquilo me fez rir. Era o tipo de poema que me divertia, o tipo que ofendia a maioria das pessoas. Por algum motivo elas me preferem lírico. Sim, escrever o troço me distraiu por alguns minutos.
A chuva não passou e alagou a cidade. O carnaval, ao contrário, passou, debaixo de lama, de risadas, de divertimentos esporádicos.
Na madrugada do último dia vi um travesti sentado num bloco de pedra. Parecia ter acabado de sair do desfile, pois não vestia nada além de uma tanga decorada com paetês e purpurina. Sentava-se curvado, com o rosto escondido nas mãos, numa posição de lamento. Uma pena azul pendia da sua cabeça careca. Talvez ele fosse o carnaval, alguém sem sexo e sem tempo que senta choroso num bloco de pedra no meio da noite, ou talvez apenas um travesti lamentando por tudo o que perdia, por tudo o que eternamente perdia.
Esse foi o carnaval. Lírico o bastante pra vocês?
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