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Uma alma morta porém ressuscitada. Um soldado maníaco com uma metralhadora que cospe fogo e palavras. E nas guerras das palavras eu sou veterano. Eu sou o homem-tigre. Somewhere in hell, i'm still typing.

domingo, 17 de maio de 2009

ADÁGIO CANINO

Minha cachorra morreu. Vocês são as primeiras pessoas para quem estou falando isso. Foi num dia em que eu não estava aqui. De noite.
O que tenho a dizer sobre ela? A melhor cachorra que já existiu no mundo. A mais verdadeira. Não esperava nada de mim além de ser amada... e amava sem condições, sem intenções ou pretensões.
Ela me olhava com seus olhos castanhos transparentes e sorria, sempre sorria. E então era como se falasse comigo... numa linguagem que ninguém mais fala, a linguagem que existe nos meus segredos, por trás de todo o meu silêncio. Linguagem que vocês acreditam escutar nos meus textos; mas, que me desculpem, vocês estão passando longe, rapaziada.
Era o tipo de cachorra que estava sempre por perto quando você acorda, que vai até a sua cama e verifica se você está bem e depois deita no chão, ao seu lado. Ela era a minha cachorra e a cachorra de todos aqueles que acreditam que pode existir o amor, mesmo quando não existe mais nada para se acreditar.
Então eu estava lá, jogando cartas com meus amigos naquela noite (por que não fiquei em casa?). E assim que entrei na sala descobri que ela havia morrido. Era epilética. Uma das epilepsias mais fortes jamais registradas.
Toda aquela vida intensa se foi; todo aquele amor incondicionado pela simples existência não existe mais; toda aquela alegria sem impurezas, refletida num sorriso silencioso, acabou. Ainda assim retirei um poema do meu caderno. E coloquei com ela quando a enterramos. Alguns de vocês vão dizer "mas que estupidez, um poema para um cachorro!", mas não me importo. Não me importo com aqueles que vão achar estúpido. Coloquei o poema junto a ela e então a enterramos. Um poema que servirá de companhia quando ela estiver atravessando as fendas abissais da eternidade e quando estiver no mais remoto recanto onde não existe o tempo, somente a escuridão. O poema que será a minha mão acariciando seus pêlos; que será a minha presença, indo com ela para onde quer que ela vá.
Dizem que sou um cara que não demonstra os sentimentos. Não chorei nem rezei quando ela morreu. Apenas escutei a notícia, e não sorri. Mas essa é só meia-verdade. Eu chorei, e eu rezei, quando escrevi o poema para ela. Eu sempre choro, rezo, quando escrevo. Acho que é isso que chamam de "sagrado". Escrever é sagrado para mim. Minha cachorra também é sagrada. Foi por isso que dei a ela um poema, porque é só o que há de sagrado em mim. Eu chorei, e eu rezei, quando escrevi o poema. E me coloquei ao lado dela, para acompanhá-la ao longo do mistério do infinito.
Um dia eu também vou morrer, e vão cruzar os meus braços sobre o meu peito. Um dia eu vou ser tudo o que não é. E por isso eu dei a ela um poema, a minha rebeldia. Dei a ela um poema porque é o que há de imortal em mim; é a única coisa na qual a morte não pode pôr as mãos.
Mel, eu estou aqui ao seu lado, enquanto você coloca a cabeça sobre a terra fria da natureza. Estou ao seu lado, enquanto os dias passam silenciosos por dentro da areia e apagam a sua silhueta. Eu estou aqui, enquanto você pisa com suas quatro patas na carência do tempo e do espaço. Estou aqui, irritando a morte com meu desdém, fazendo-a perceber que ela não é maior que todas as coisas, mostrando que existem certas coisas em mim, em todo mundo, que ela não pode tocar, pode apenas olhar. Estou aqui enquanto você late pelos túneis escuros e ecoantes das lembranças. Estou aqui, chorando, rezando. Ou melhor, acariciando seu pêlo.
IN MEMORIAM
Annie, Billie Jean, Alone, Mel, Nigra.

Um comentário:

  1. Daniel, muito lindo seu texto e seu amor por esses amigos que tanto amamos, sua dor é a minha dor.

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